Entrevista: Loterias Estaduais em Transformação - Os Rumos e Impactos do Novo Cenário do Setor

O BiS SiGMA Americas 2025 promete ser um marco para a indústria de iGaming no Brasil, reunindo os maiores especialistas e líderes do setor para discutir o presente e o futuro das apostas e loterias no país. Em um cenário de intensa transformação, onde a regulamentação avança e novas oportunidades surgem, as loterias estaduais se tornam protagonistas de um debate crucial sobre autonomia, inovação e desenvolvimento econômico.

Com mais de três décadas dedicadas ao setor de jogos, apostas e loterias, Amilton Noble é um dos grandes nomes desse mercado. Como Diretor Executivo da Hebara, desempenhou um papel fundamental na criação e no desenvolvimento de produtos lotéricos de sucesso, sempre combinando inovação, análise de negócios e estratégias de otimização para potencializar resultados. Sua expertise e visão estratégica ajudaram a consolidar a empresa como referência no setor, tornando-o uma voz essencial para debater os desafios e oportunidades das loterias no Brasil.

Para discutir o impacto das regulamentações, o equilíbrio entre a atuação federal e estadual e o futuro desse mercado, Lygia Rodrigues, Head de Conferências do BiS SiGMA Americas, entrevista Amilton Noble, trazendo insights valiosos sobre como as loterias podem se fortalecer e contribuir para um ambiente competitivo e sustentável.

Lygia Rodrigues: Amilton, é um prazer conversar com você sobre um tema tão estratégico e em constante evolução no Brasil. A recente decisão do STF trouxe um novo capítulo para a regulamentação das apostas no país, ao impor restrições à atuação de loterias estaduais no cenário nacional. Esse movimento reacende o debate sobre os limites da autonomia dos estados e o papel do governo federal na estruturação desse mercado. Na sua visão, quais são os impactos dessa medida para as operações estaduais e para o avanço da regulamentação das apostas esportivas no país?

Amilton Noble: Lygia, o prazer é meu por ter a oportunidade de falar com você sobre um tema tão relevante e atual. A convivência pacífica entre os reguladores de todas as esferas é imperativa para termos um ambiente regulatório saudável e capaz de atender a todos os interesses.

A recente decisão do ministro André Mendonça, ainda em caráter liminar, estabelece um marco importante ao definir parâmetros para a atuação das loterias estaduais, restringindo sua operação ao próprio território, independentemente da forma de comercialização das apostas. A tese defendida pela Loterj, que prosperou por mais de um ano, agora foi invalidada, o que gera uma sensação de segurança para os operadores que optaram por uma licença federal, ao mesmo tempo em que compromete a estratégia de quem apostou na licença da Loterj como forma de atuar em qualquer lugar do país.

A decisão ainda precisa ser validada pelo STF e, até lá, o suspense continua.

Entendo que todos os entes deveriam buscar o consenso, trabalhando de forma conjunta para que fossem complementares, e não concorrentes. Infelizmente, isso não foi visto até agora.

Lygia Rodrigues: Recentemente, vimos municípios de pequeno porte concedendo credenciamentos para operadoras de apostas, o que gerou questionamentos sobre os limites da regulamentação vigente e a atuação das autoridades federais. Esse cenário expôs brechas que podem comprometer a construção de um mercado seguro e bem estruturado. Diante desse contexto, quais desafios o Brasil precisa superar para estabelecer uma regulamentação mais clara e uniforme para as apostas online?

Amilton Noble: Reiterando o que mencionei anteriormente, só vejo futuro para um ambiente regulatório saudável se todos os reguladores, independentemente das esferas, trabalharem de forma conjunta e complementar. Se a tônica regulatória permanecer como a que vimos até agora, certamente teremos problemas e uma judicialização desnecessária.

A meu ver, os estados desempenham um papel complementar no processo regulatório. E, se for validado pelo STF, os municípios também poderiam ter um papel importante no aumento da canalização do mercado. Como sempre digo, os entes não podem brigar entre si. O “inimigo” é outro. Todos deveriam concentrar esforços no combate ao jogo ilegal, que, esse sim, é pernicioso para o sistema.

Se todos sentarem à mesa e encontrarem seu papel no processo regulatório, haverá espaço para todos. Mas, se continuarem se digladiando, quem ganha é o mercado ilegal.

Lygia Rodrigues: Com as loterias desempenhando um papel fundamental na arrecadação de recursos para causas sociais e no desenvolvimento econômico de diversos estados, há um debate crescente sobre como garantir que esses fundos sejam geridos de forma eficiente e transparente. Quais são os principais desafios e oportunidades para as loterias estaduais e municipais no Brasil? Como é possível equilibrar a autonomia local com a necessidade de um modelo regulatório mais coeso e seguro?

Amilton Noble: Essa é a questão crucial. A União nunca sinalizou que dividiria os recursos gerados pelas loterias federais com estados e municípios. É inegável que o financiamento das loterias federais é destinado a causas nobres, mas esses recursos não chegam diretamente aos estados e, muito menos, aos municípios.

Diante desse cenário, os estados perceberam que precisavam lutar por sua autonomia para gerar recursos próprios, sem depender da transferência de renda para a União.

Após as ADPFs 492 e 493, os municípios passaram a entender que as decisões do STF deixaram lacunas que sugeriam a possibilidade de atuarem diretamente na criação de loterias. Esse movimento se tornou realidade, com alguns municípios já operando, apesar da incerteza jurídica desse modelo.

O que gera desconforto é a ausência de uma definição objetiva sobre a extensão da atuação das loterias estaduais e municipais. A legislação vigente sobre o tema data de 1944, quando sequer se falava em internet e apostas online. Isso abre margem para múltiplas interpretações.

Até agora, o que se viu foi um jogo de forças entre diferentes esferas para garantir um maior quinhão das outorgas destinadas à regulamentação das apostas de quota fixa.

Lygia Rodrigues: Enquanto algumas licenças para operar no mercado de apostas exigem investimentos milionários, outras jurisdições adotam valores significativamente menores, criando um cenário de disparidade entre os operadores. Como essa diferença impacta a competitividade e a equidade do setor no Brasil? Quais caminhos podem ser seguidos para garantir um ambiente mais equilibrado?

Amilton Noble: Lygia, aqui eu procuro separar o valor da outorga das condições para obtê-la. A meu ver, o valor é o último ponto a ser discutido. Explico melhor: mais importante do que a definição do valor da outorga (pois é inegável que cada ente tem a decisão discricionária de fixar esses valores) é estabelecer princípios regulatórios mínimos, além de critérios claros de governança e compliance que todos os operadores devem seguir, independentemente do regulador.

Hoje, há uma grande disparidade entre os processos de autorização conduzidos pela União, pelos estados e, até mesmo, por municípios que concederam licenças sem deixar claro seu alcance. Essa diferença fica evidente nos valores das outorgas.

Se todos os entes fossem obrigados a exigir níveis adequados de KYX, princípios de jogo responsável e adequação às regras do CONAR, teríamos uma uniformidade regulatória. Dessa forma, o valor da outorga se tornaria menos relevante, pois todos estariam seguindo a mesma direção.

Atualmente, não é o que ocorre. Os menores valores cobrados sugerem um nível reduzido de controle por parte de alguns reguladores, que não exigem o mesmo rigor operacional aplicado pela União.

Para mim, esse é o ponto-chave. A legislação federal deveria definir parâmetros obrigatórios para todos, deixando apenas alguns aspectos à discricionariedade dos entes locais. Enquanto isso não acontecer, veremos uma “guerra de preços”.

Lygia Rodrigues: A regulamentação das loterias no Brasil tem passado por mudanças significativas, buscando equilibrar a atuação das esferas federal e estadual. Com novas diretrizes para a exploração desse mercado, surgem desafios para garantir um ambiente transparente e sustentável. Nesse contexto de transformação, quais ações são indispensáveis para que as loterias não apenas operem de forma justa e segura, mas também se tornem mais inovadoras e competitivas?

Amilton Noble: Sou um otimista por natureza. Lutei por muitos anos para que o STF reconhecesse o direito dos estados de operarem suas loterias, como ocorreu nas ADPFs 492 e 493. Quando a Hebara atuou como operadora da Loterj, a disputa foi intensa. A União sempre tratou as loterias estaduais como ilegais e inferiores ao que realmente eram. Foram anos de batalha para chegarmos ao reconhecimento da autonomia estadual.

Agora, os municípios também buscam espaço para atuar e gerar suas próprias receitas. No entanto, essa disputa engessou o mercado por décadas. Durante quase 50 anos, poucos estados se movimentaram para ativar ou reativar suas loterias. Hoje, esse cenário mudou, e essa movimentação é extremamente positiva.

Porém, enquanto as disputas continuam, o mercado encolhe. Falta investimento em inovação, e novas propostas de jogos informais tomam conta das ruas.

Reitero que é essencial que todos os entes federados cheguem a um consenso sobre seu papel no ambiente regulatório. Sem isso, viveremos disputas judiciais intermináveis – e, no final, quem ganha é o ilegal.