Fraude sagrada: operadores não licenciados do Quênia se escondem atrás do evangelho

Mercy Mutiria
Escrito por Mercy Mutiria
Traduzido por Thawanny de Carvalho Rodrigues

O Quênia viu seu setor de televisão digital crescer rapidamente, com mais de 359 canais transmitidos para lares em todo o país. Cerca de um quarto dessas emissoras tem foco religioso, combinando ensinamentos espirituais com entretenimento. No entanto, por trás desse boom, esconde-se uma realidade preocupante: emissoras religiosas estão abusando das ondas de transmissão para lucrar com esquemas ilegais. No centro dessa polêmica está a Yahweh’s Media Services Limited, uma empresa sediada em Nairóbi, acusada de liderar um dos golpes mais audaciosos já registrados na história da radiodifusão queniana.

Como os canais religiosos ganharam força

A migração para a TV digital abriu espaço para centenas de novos canais, muitos dos quais usaram temas religiosos para atrair audiência. Emissoras como Jawabu TV, Madhabahu TV, Yahweh’s TV e Shahada TV transmitem mensagens de pregadores, músicas gospel e até filmes de ação dublados. Mas, por trás dessa fachada de fé, um esquema engenhoso comanda os bastidores. Ele é liderado por um autoproclamado “profeta” chamado David Maina, também conhecido como Karuru ou Kagechu, que opera a partir de um escritório no K-Mall, a poucos metros da Kangundo Road.

Quando o evangelho cruza a linha e vira jogo de azar

Sob o disfarce de caridade e bênçãos divinas, as pessoas são incentivadas a participar de jogos de sorte transmitidos ao vivo. Apresentadores — muitas vezes anônimos e filmados em cenários enigmáticos — garantem aos telespectadores “bênçãos” na forma de prêmios em dinheiro, caso façam pequenas transferências via pagamento móvel. A contribuição inicial varia entre KES 10 e 50, um valor aparentemente acessível que acaba atraindo as pessoas mais vulneráveis e financeiramente fragilizadas do país. Quem participa vê notificações falsas surgirem na tela com mensagens como: “Parabéns, você é finalista” ou “Envie KES 20 agora para reivindicar seu prêmio”.

Denúncias expõem a verdade

Denunciantes expuseram o funcionamento desse esquema em detalhes chocantes. “Ninguém sai ganhando. É tudo uma farsa. Criamos vencedores fictícios e o dinheiro some imediatamente”, revelou um ex-funcionário. Gravações de bastidores mostram apresentadores zombando das vítimas. Um deles ri e diz: “wizi ninakufunza” (estou te ensinando a roubar). Outro comenta: “é agora que a gente ganha dinheiro”, revelando a intencionalidade por trás da exploração.

Funcionários relatam um ciclo de mentiras: participantes falsos são preparados, nomes aleatórios são inventados do nada e ninguém nunca recebe os prêmios prometidos. O público é incentivado a enviar cada vez mais dinheiro, alimentando a ilusão de que está “a um passo de ganhar”, enquanto se afunda em dívidas e desespero.

O custo humano devastador

Os danos causados por esse golpe são imensos. Ruth Wanjiku, uma avó que vive em Kikuyu, estava doente em casa quando se deparou com a armadilha. Seduzida pela promessa de ganhar KES 10.000 enviando apenas 10, ela acabou perdendo mais de KES 6.000 em menos de uma hora. “Anunciaram meu nome e pediram para eu mandar mais dinheiro para ganhar. Continuei participando. Parecia que só eu estava envolvida”, contou.Da mesma forma, o viúvo Joseph Ng’ang’a perdeu as economias destinadas às mensalidades escolares dos filhos para esse esquema. “Só queria ganhar KES 40.000, mas acabei sem nada”, relatou. Assim como ele, inúmeros outros guardaram dinheiro para necessidades reais, apenas para vê-lo desaparecer. Denunciantes confirmam que isso é parte do plano. “A empresa nunca teve a intenção de entregar prêmios de verdade. Eles até usam funcionários para fingirem ser vencedores. Ninguém ganha nada”, admitiu um informante.

Usando as emoções como ferramenta

O golpe mira precisamente nas fragilidades econômicas do Quênia. Desemprego, inflação e o aumento no custo de vida tornam a promessa de dinheiro fácil irresistível. Os apresentadores se aproveitam dos medos das pessoas, contando histórias sobre doenças, mensalidades escolares em atraso e emergências familiares. Um deles chegou a dizer: “Se seu filho está doente, envie KES 50 para ganhar 50.000”. Essas frases são cuidadosamente elaboradas para explorar as maiores preocupações do público.

Falta de fiscalização

Apesar das evidências claras de atividades ilegais, as autoridades têm falhado em combater o problema. Peter Mbugi, diretor do Conselho de Controle e Licenciamento de Apostas (BCLB), admitiu que a Yahweh’s Media Services “não possui licença para apostas e, portanto, não está autorizada a realizar qualquer tipo de jogo de azar”. Ainda assim, a empresa se aproveita de brechas legais e adapta sua apresentação — ora como programas religiosos, ora como entretenimento — para evitar ser detectada.

A Autoridade de Comunicações do Quênia (CA) enfrenta dificuldades semelhantes. Embora conceda licenças para frequências de transmissão, não possui os instrumentos necessários para fiscalizar práticas de jogo escondidas sob outros tipos de conteúdo. Essa lacuna permite que emissoras enganosas entrem diariamente em milhões de lares, praticamente sem sofrer consequências.

Chamados para ação imediata

Defensores dos consumidores e autoridades policiais alertam que a fraude nas transmissões ao vivo tende a piorar sem uma ação firme. Eles pedem que o BCLB e a CA colaborem para realizar operações, bloquear contas bancárias suspeitas e exigir que emissoras religiosas divulguem todas as informações financeiras. Também recomendam que as operadoras de pagamento móvel monitorem e sinalizem transações associadas a transmissões fraudulentas.

As comunidades locais também precisam agir. Educar públicos vulneráveis sobre como lidar com mídia e dinheiro pode ajudar a reduzir o impacto desse golpe. Há ainda um apelo para que líderes religiosos se posicionem contra a mistura entre evangelho e jogo de azar e rompam relações com emissoras suspeitas.

Reflexão final

A transição do Quênia para a TV digital teve como objetivo democratizar o acesso ao entretenimento e à informação. No entanto, também criou uma plataforma onde um “evangelho da ganância” se alimenta das dificuldades econômicas e da fé das pessoas. As denúncias revelaram a extensão desses golpes, provocando uma crescente reação pública. O maior desafio da mídia queniana agora é saber se as autoridades reguladoras e a sociedade civil conseguirão agir com a urgência necessária para proteger os cidadãos mais vulneráveis do país.

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