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Um painel animado durante o recente NEXT.io Summit, realizado na semana passada em Valletta, expôs um embate jurídico e ideológico que vem se formando silenciosamente nos Estados Unidos há anos. Os mercados de previsão tornaram-se o principal campo de disputa desse debate, embaralhando as fronteiras entre regulamentação, especulação e risco. Retire os ruídos e tudo gira em torno de uma pergunta que parece simples, mas carrega profundos desdobramentos: os mercados de previsão são uma forma de atividade financeira ou apenas uma aposta disfarçada? As implicações estão longe de ser teóricas.
Essa não é a primeira vez que os Estados Unidos enfrentam dificuldades para definir a natureza da especulação. De casas de apostas clandestinas no início do século XX até as opções binárias na década de 2010, a legislação americana sobre finanças e jogos de azar sempre esbarrou nas inovações do mercado informal — até ser forçada a tomar uma posição. Os mercados de previsão são o novo capítulo dessa história.
Plataformas como Kalshi e Polymarket vêm ganhando popularidade ao oferecer mercados sobre temas que vão desde eleições presidenciais até padrões climáticos. A estrutura remete à negociação financeira, mas chame como quiser: você está comprando contratos que pagam se o futuro seguir o caminho que você previu. E se não seguir? Azar o seu. A sensação é de aposta. O funcionamento lembra o de uma operação de mercado. Mas afinal, o que é isso?
A tensão ficou evidente logo no início do painel. Alguns participantes argumentaram que essas plataformas oferecem instrumentos financeiros. Outros foram categóricos: trata-se de apostas, simples assim. “Se você aposta que o New York Yankees vai vencer o Padres”, desafiou um dos palestrantes, “está tentando se proteger de um risco ou está só apostando?”
Essa discussão não é nova. A definição legal de uma aposta nos EUA se baseia no risco de perder algo de valor em um evento futuro e incerto. Segundo os críticos, esse conceito abrange tranquilamente os mercados baseados em eventos. Já os defensores de plataformas como a Kalshi sustentam que se trata de ferramentas financeiras legítimas — comparáveis a derivativos climáticos ou contratos futuros lastreados por seguros.
Nos EUA, as regulamentações sobre jogos de azar são, em sua maioria, responsabilidade dos estados. No entanto, essas plataformas são supervisionadas pela Commodity Futures Trading Commission (CFTC), uma entidade que não possui autoridade sobre integridade esportiva, manipulação de resultados ou práticas responsáveis de jogo. A Kalshi, por exemplo, opera com contratos de eventos auto-certificados, o que a dispensa de obter licenças estaduais, passar por auditorias ou seguir tabelas de odds pré-aprovadas como os sites de apostas precisam fazer.
O problema é estrutural. A CFTC não foi criada para lidar com riscos ao consumidor, integridade de eventos ou comportamentos compulsivos. Sua função é coibir manipulação de mercado, não manipulação de partidas. Enquanto os EUA não criarem uma entidade capaz de operar nas esferas financeira e de jogos simultaneamente, a regulação seguirá reativa — e insuficiente.
Esse ponto cego regulatório tem chamado cada vez mais a atenção do mundo esportivo. A Major League Baseball, por exemplo, teria enfrentado dificuldades para acessar dados de algumas dessas plataformas. Diferentemente dos sites de apostas, as bolsas de previsão não são obrigadas a compartilhar informações sobre negociações — o que deixa as autoridades esportivas no escuro.
Os mercados de previsão ganharam visibilidade nacional durante as recentes eleições nos EUA, quando usuários puderam comprar contratos apostando em quem venceria a disputa. A legalidade desse tipo de negociação em todos os 50 estados, especialmente diante da ausência de regras claras sobre publicidade, gerou preocupação.
“Estamos falando de um mercado de bilhões de dólares praticamente sem fiscalização”, comentou um dos palestrantes. “E ainda assim, ele é mais preciso do que as pesquisas.”
Com a aproximação das eleições presidenciais de 2024, plataformas como a Kalshi voltaram a oferecer mercados com alta movimentação, prevendo os resultados estado por estado, mesmo enfrentando batalhas jurídicas. Em um cenário político fragmentado, essas plataformas deixaram de ser curiosidades. Elas influenciam como as pessoas pensam, sentem e se planejam.
Mais do que a precisão, a preocupação gira em torno de como essas plataformas são promovidas, regulamentadas — e tributadas. Ou melhor, da falta de tributação. Diferentemente dos sites de apostas esportivas, os mercados de previsão não seguem os mesmos regimes fiscais estaduais. Seus objetivos também são diferentes. Não se trata de atrair mais perdedores, e sim de gerar mais volume, mais envolvimento.
“Não é sobre perder. É sobre engajamento e crescimento de volume”, resumiu um dos palestrantes.
Bolsas de apostas como a Betfair já existem há décadas na Europa, mas nunca conseguiram se firmar nos EUA devido à falta de liquidez e às restrições legais impostas pela Wire Act. Os mercados de previsão, por outro lado, estão avançando por entre as brechas da regulamentação.
A principal diferença está na estrutura. Os sites de apostas tradicionais operam com um modelo de banca: você aposta contra a casa, que define as odds. Já nos mercados de previsão, você negocia contra outros usuários. É uma bolsa, não uma banca. Os tipos de eventos são definidos pelas próprias plataformas e não passam por aprovação prévia de um regulador central.
Esse formato atrai um público distinto. Anúncios no TikTok e Instagram de plataformas como a Polymarket são direcionados à Geração Z, familiarizada com criptomoedas e o vocabulário do mercado financeiro. Não estamos falando do apostador médio da NFL. Estamos falando de nativos digitais, que cresceram usando Robinhood, não Ladbrokes.
Comportamentalmente, essas plataformas se inspiram no universo fintech. Os usuários recebem notificações push, alertas de volatilidade em tempo real e gráficos de volume de negociação — ferramentas que provocam um estímulo semelhante ao de investir em criptoativos, mais do que a adrenalina de uma aposta esportiva.
Elas não se parecem nem funcionam como casas de apostas. Um dos palestrantes descreveu o layout das plataformas como “meio lousa, meio planilha”. A captação de usuários é feita por meio de vídeos curtos nas redes sociais, e não por banners promocionais ou bônus em dias de jogos.
“Eles estão claramente mirando outra geração”, observou um dos participantes. “Pessoas vindas do mercado de ações ou cripto, que buscam uma experiência mais ativa e com pegada de trader.”
Alguns acreditam que os receios em relação à manipulação de resultados são exagerados. Esportes como beisebol e futebol americano já contam com forte regulamentação. Mas eventos como o Oscar ou eleições parecem inofensivos — e essa é justamente a armadilha. Não há rede de segurança, botão de pausa ou qualquer mecanismo para evitar que tudo saia do controle. O risco de informações privilegiadas, resultados opacos ou influências externas é bem maior — e a proteção regulatória, bem menor. Essa assimetria abre espaço para abusos.
A CFTC está mal equipada para lidar com esses novos mercados sozinha. Sua missão principal é impedir manipulação de preços em commodities e instrumentos financeiros — não garantir a integridade de jogos ou prevenir danos relacionados a apostas. À medida que essas plataformas evoluem, a agência provavelmente precisará contar com especialistas além do seu escopo atual.
“A CFTC está se autorregulando neste momento”, disse um dos palestrantes. “Enquanto ela não estabelecer regras formais, estamos todos no escuro.”
A posição da CFTC sobre contratos políticos já mudou mais de uma vez, como mostra a recente decisão de retirar sua apelação contra os mercados baseados em eventos da Kalshi. Alguns participantes sugeriram que o futuro dos mercados de previsão dependerá tanto de política quanto de política pública. Nomeações feitas durante o governo Trump, afirmaram, parecem mais abertas à inovação impulsionada por cripto e menos propensas a impor restrições.
Olhando para frente, os mercados de previsão talvez deixem de ser um nicho para se tornarem porta de entrada para uma nova geração no ecossistema das apostas — ou até evoluam como um segmento próprio. Mas uma coisa é certa: classificá-los não será simples.
Se os EUA quiserem mesmo incentivar a inovação com responsabilidade, precisam parar de fingir que essas plataformas são marginais. Elas não são. Elas representam uma força crescente, que se posiciona em uma zona desconfortável entre finanças, apostas e especulação gamificada.
Enquanto os reguladores não tomarem uma decisão clara, os mercados de previsão continuarão a transitar entre definições — não são exatamente apostas, tampouco instrumentos financeiros, mas movimentam bilhões em um espaço que ninguém quer nomear abertamente. No fim das contas, os mercados de previsão não estão apenas testando os limites da regulamentação. Estão desafiando nossas noções de verdade, confiança e do que significa realmente “saber” algo antes que aconteça.
E até que essa questão seja resolvida, cada operação continuará flutuando entre uma aposta e um blefe — na terra da liberdade.