Setor ilegal avança silenciosamente e ocupa espaço nas apostas

Escrito por David Gravel
Traduzido por Thawanny de Carvalho Rodrigues

O setor de apostas do Reino Unido volta a ser assombrado por um monstro que se recusa a permanecer nas sombras. Quando a SiGMA News publicou na semana passada a matéria “A crescente ameaça do setor ilegal de apostas no Reino Unido“, o foco do debate mudou: da repressão para a educação, com reações vindas de educadores, operadores e grupos de prevenção de danos. Em parceria com a Social Intent, o relatório Deal Me Out Black Market Evaluation expôs o que há por trás do mundo não regulamentado das apostas. A resposta foi imediata. Não eram simples alertas repetidos — eram comportas se abrindo.

A SiGMA News já havia alertado, no artigo “Reforma radical das apostas no Reino Unido pode sair pela culatra diante do avanço do jogo ilegal”, que mudanças legislativas excessivas poderiam ter o efeito contrário. Este novo relatório mostra o quão perto do abismo realmente estamos.

Uma onda silenciosa avança pelo Reino Unido, das escolas aos cassinos de criptomoedas, e deixa o mercado regulamentado em desvantagem. A SiGMA News reuniu vozes de todos os lados do debate — de reguladores e operadores a defensores com experiência de vida. Para líderes do setor, é certo que o mercado ilegal cresce nas lacunas deixadas pela atual política britânica. E se continuarmos ignorando isso, ele deixará de ser algo marginal e passará a ser o novo normal.

Conseguiremos conter essa maré? Nesta série especial em duas partes, a SiGMA News investiga o caos silencioso por trás da ascensão do mercado ilegal no Reino Unido e questiona: o que acontece quando a confiança desaparece?

Qual é o preço do nosso silêncio?

As descobertas do relatório não são apenas mais uma onda de pânico moral. São uma denúncia fundamentada por dados de um sistema que, mesmo com os esforços contínuos dos reguladores, ainda permite que muitos atores fechem os olhos. Vamos mesmo deixar tudo nas mãos das autoridades? Podemos confiar que os operadores farão mais do que apenas cumprir protocolos mínimos? E os consumidores que acessam sites ilegais de apostas sabem que podem estar arriscando muito mais do que apenas o dinheiro na carteira?

Numa era em que a verdade tem nuances, a instabilidade gera o caos. Enquanto crises políticas e pressões econômicas empurram as pessoas para comportamentos mais arriscados, a indústria de apostas tem uma oportunidade — não apenas de lucrar, mas de proteger. De defender a linha entre liberdade e perda. De mostrar o caminho de volta das sombras.

Essa mudança começa pela educação. E vai além da conscientização: exige ação.

Quando os sistemas dormem, as sombras falam

Em declaração à SiGMA News, a Comissão de Apostas do Reino Unido (UKGC) confirmou que, desde abril de 2023, encaminhou mais de 118 mil URLs ilegais para remoção — sendo mais de 81 mil eliminados apenas por Google e Bing. Trata-se de um aumento de dez vezes em relação ao ano anterior. No mesmo período, a equipe de Fiscalização da UKGC também emitiu mais de 1.150 ordens de cessação ou notificações de interrupção de atividade.

“Levamos o jogo ilegal muito a sério”, disse um porta-voz da Comissão à SiGMA News. “Estamos e continuaremos tomando medidas para desmantelar o mercado não licenciado — atuando com plataformas de tecnologia como mecanismos de busca, órgãos de fiscalização como a Receita Federal Britânica (HMRC) e facilitadores como provedores de pagamento e anunciantes.”

Apesar da repressão, o relatório Deal Me Out estima que mais de 420 mil crianças estejam acessando plataformas não regulamentadas. Isso não é uma ameaça escondida — é uma realidade paralela. E o que podemos fazer diante disso?

Não faz muito tempo, bastava trancar a porta de casa à noite para garantir a segurança dos seus filhos. Mas o celular mudou isso. A internet mudou isso. Agora, a indústria de apostas precisa encarar uma nova realidade: o mercado ilegal nunca dorme. Uma geração mais curiosa e bem informada não está pedindo mais restrições. Está pedindo verdade, transparência e ferramentas para entender um mundo em que o risco está a um clique de distância. Se o mercado regulamentado não souber dialogar com essa geração, o mercado ilegal já está ocupando esse espaço.

A educação não está surtindo efeito

Adrian Sladdin, uma das principais vozes na área de educação sobre jogos de apostas, cofundador do Ethical Gambling Forum e ex-diretor educacional da Young Gamblers’ and Gamers’ Education Trust (YGAM), declarou à SiGMA News: “Precisamos lembrar da importância de educar nossos jovens sobre conteúdos não regulamentados — especialmente nesta era digital, em que comportamentos de risco são parte do processo natural de descoberta.”

Ele também alerta para os dados da UKGC, mas não por estarem inflados.

“É sempre difícil avaliar esses números. Quando você entende que os dados da Comissão de Apostas em 2024 se baseiam em apenas cerca de 4 mil respostas, é preciso cautela. Sabemos também que o termo ‘não regulamentado’ engloba desde apostas entre amigos e jogatinas em fliperamas até o mercado ilegal.”

Mas o problema, segundo ele, é real. As redes sociais estão fazendo o trabalho de marketing para operadores do mercado ilegal, e os jovens estão caindo direto nessa armadilha.

“As redes sociais estão ganhando cada vez mais espaço na promoção de apostas por meio de influenciadores e celebridades — e é difícil combater essa maré. Há muito trabalho pela frente, e lidar com o ambiente online é muito mais complexo do que enfrentar o cenário físico.”

Sladdin acrescenta: “Sempre defendi que os temas ligados ao jogo deveriam fazer parte do currículo escolar (PSHE), por isso criamos a YGAM em 2014. Fizemos questão de que a mensagem não fosse moralista ou proibitiva, mas uma oportunidade real de explorar por que as pessoas apostam, entender probabilidades, o setor, os danos e o vício, tudo isso por meio de atividades educativas. Para a Geração Z, precisamos repensar, especialmente diante do crescimento dos games, eSports e cassinos virtuais.”

Quando a mensagem não chega, o risco cresce

Essa perspectiva também é compartilhada por Iris den Boer, diretora de Relações Externas da Deal Me Out, que acredita que o maior desafio está em tornar os riscos visíveis.

“Uma das maiores dificuldades é ajudar as pessoas a identificarem o que é um jogo não regulamentado. Isso nem sempre é óbvio — principalmente para os jovens”, afirma.

E qual seria a solução? Não são mais panfletos.

A organização promove ferramentas como o GameCheck e incentiva o letramento digital intergeracional.

“Trabalhamos para combater essas narrativas enganosas por meio do desenvolvimento do pensamento crítico e da alfabetização digital”, explica. “Nossa mensagem é simples e empoderadora: se parece bom demais para ser verdade, provavelmente é. Se capacitarmos os jovens de hoje a compreender e questionar os riscos online, eles poderão transmitir esse conhecimento no futuro. Isso é sustentabilidade.”

Sladdin completa: “Quando criamos a YGAM, fomos uma lufada de ar fresco e recebemos apoio da indústria para divulgar nossa mensagem. É desanimador ver nas redes sociais comentários de pessoas dizendo que deveria haver um programa educacional para jovens ou que ouviram falar de algo chamado loot box. Claramente a mensagem está se perdendo em algum ponto. É muito melhor educar preventivamente do que lidar com as consequências depois.”

Criminalidade e credibilidade

De acordo com a Comissão de Apostas do Reino Unido, as plataformas do mercado ilegal não apenas representam uma ameaça direta aos consumidores, mas também estão sendo ativamente combatidas. A UKGC não mede palavras ao falar sobre o risco:

“Quem aposta em sites não licenciados está apoiando atividades ilegais e se colocando em perigo. Seus dados financeiros podem ser roubados, vendidos ou mal utilizados — e você pode nem receber seus ganhos.”

Um porta-voz da Comissão acrescentou: “Esses sites alimentam o crime e não seguem os padrões ou as medidas de segurança que exigimos, como a opção de autoexclusão ou o monitoramento de danos relacionados ao jogo. O consumidor pode facilmente verificar se um site é licenciado por meio do nosso cadastro online.”

Como den Boer resume: “O jogo, de alguma forma, sempre vai existir. Mas ambientes regulamentados oferecem muito mais controle, responsabilização e mecanismos de proteção ao consumidor. Já os operadores do mercado ilegal fogem das suas responsabilidades, ignoram o dever de cuidado e oferecem pouco ou nenhum recurso para pessoas prejudicadas.”

Ainda assim, a pergunta persiste: se já existe tanta repressão em curso, por que o mercado ilegal continua crescendo?

O setor regulamentado está perdendo o controle?

A SiGMA News entrou em contato com cinco dos maiores grupos de apostas do Reino Unido — Entain, Evoke, Flutter, Bet365 e Kindred Group (agora parte da FDJ United). A Evoke recusou o convite, e um porta-voz informou que o Conselho de Apostas e Jogos (BGC) “comentará em nome do setor”. Em resposta, o BGC afirmou à SiGMA News que seus membros “adotam uma política de tolerância zero quanto a apostas por menores de idade”, impondo verificação rigorosa de idade em todos os produtos para impedir o jogo por pessoas abaixo da idade permitida. Acrescentaram ainda:

“O BGC financiou o Programa de Prevenção de Danos com Jogos de Azar para Jovens, no valor de £ 10 milhões, desenvolvido por duas organizações líderes — YGAM e GamCare — e que já alcançou mais de dois milhões de jovens entre 11 e 19 anos, além de profissionais que trabalham com esse público, no Reino Unido.”

Até o momento da publicação, os demais operadores ainda não haviam respondido.

A Entain foi a única grande operadora a responder diretamente às nossas perguntas sobre o relatório Deal Me Out e declarou:

“Operadores ilegais anunciam amplamente nas redes sociais e não enfrentam qualquer tipo de restrição quanto a limites de apostas ou ofertas de bônus. É urgente educar os consumidores sobre os riscos significativos de utilizar essas plataformas.”

A empresa também acrescentou: “A repressão a operadores ilegais deve ser uma prioridade para reguladores e governos ao redor do mundo. Isso ajudará a combater o crime, gerar fundos tão necessários para os cofres públicos e proteger os consumidores de ambientes onde há pouca ou nenhuma salvaguarda. Mas os reguladores também precisam agir para garantir que o setor ilegal não continue a se expandir como consequência de regulações excessivamente rígidas.”

A Entain ainda indicou à SiGMA News dois estudos recentes — um da Frontier Economics, encomendado pelo BGC, e outro da Regulus — que apresentam soluções adicionais de políticas públicas. Uma das propostas é utilizar o Digital Markets Bill do Reino Unido para obrigar as plataformas tecnológicas a bloquearem anúncios de apostas ilegais nas redes sociais.

Entre a negação e a demora, o abismo aumenta

É nesse descompasso entre percepção e proteção que o setor ilegal prospera. E embora a comunicação pública tenha melhorado, o ritmo das mudanças ainda fica atrás das estratégias daqueles que operam fora da lei.

Em comunicado à SiGMA News, o Conselho de Apostas e Jogos (BGC) alertou: “Este relatório e suas descobertas alarmantes devem servir como um alerta para o governo, que precisa evitar regulações excessivamente severas — o que corre o risco de empurrar apostadores para o setor ilegal, cada vez mais perigoso e em crescimento.”

“Operadores ilegais miram deliberadamente grupos vulneráveis, incluindo pessoas autoexcluídas e menores de idade, ao mesmo tempo em que drenam recursos essenciais do esporte e privam o Tesouro de arrecadação fiscal.”

O BGC reforçou: “Sempre deixamos claro que regulamentações equilibradas e um regime tributário estável são as melhores defesas contra o setor ilegal. Esses operadores não seguem nenhuma das medidas de jogo responsável aplicadas com rigor pelos membros do BGC, tampouco promovem ferramentas de proteção ao jogador, como o setor regulamentado faz.”

Sladdin ressalta: “A mudança começa de cima, e é necessário haver liderança estratégica nessa área e, ouso dizer, uma colaboração entre operadoras, educadores, entidades de caridade e outros.”

Esse chamado à colaboração já não é mais opcional.

A segunda parte desta investigação trará mais reflexões dos especialistas citados hoje, além de novas perspectivas com Kevin O’Neill (Responsible Gaming Foundation), Matthew Hickey (Social Intent) e um comunicado da Gamstop. Serão explorados temas como a lacuna de confiança, falhas tecnológicas e o perigoso avanço de um submundo digital. Não perca amanhã.

Se os riscos forem maiores do que apenas financeiros e a situação estiver ficando insustentável, saiba que há apoio disponível. O serviço de atendimento para dependência em jogos da NHS oferece ajuda confidencial e suporte para a saúde mental.

Inscreva-se AQUI na contagem regressiva das 10 principais notícias da SiGMA e na newsletter semanal para se manter atualizado com tudo o que acontece no universo iGaming — e ainda aproveitar ofertas exclusivas para assinantes.